E se o mundo fosse mais complexo e repleto de mistérios tão antigos quanto à sua própria criação? E se você fosse dormir normalmente, mas acordasse em outro lugar e tivesse outro corpo? O que você faria se a película que divide o mundo comum do aterrorizante caísse por terra e você fosse o único a notar a diferença?

Isaac D é o livro de estreia do autor brasileiro Leandro Pileggi voltado para o público jovem adulto, ao mesmo tempo que é uma ode à um dos mais celebrados escritores de horror cósmico de todos os tempos: H. P. Lovecraft.

Imagine a simbiose entre o terror dos mestres obscuros antigos com os ágeis e potentes golpes das mais variadas artes marciais de jogos de videogame, some flerte com lendas urbanas, um garoto tímido e uma garota destemida e terá o cerne deste livro. Em plena transição da vida do campo para a urbana, o jovem e gentil Isaac se encontrará em um novo e complicado mundo onde seus valores e boa educação quase sempre serão renegados causando tremendo desconcerto até o sono domar seus sentidos e o mundo dos sonhos se abrir, transportando-o para um ainda mais complicado e louco universo.

Um aviso, caro leitor, a partir daqui você encontrará uma enxurrada de referências da cultura pop, ação digna de um show de rock, muito mistério, criaturas abomináveis e uma ótima dose de humor com tempero brasileiro.

Muito embora o livro não tenha funcionado completamente para esta leitora que vos fala, separei algumas reflexões para vocês mesmos julgarem. Como esse é, o que se chama no campo literário, o romance de formação do autor, possui vários acertos e alguns desvios que me deixaram levemente decepcionada já que eu tinha altas expectativas quanto à essa leitura. Não temam! Somos todos humanos, até onde sabemos, e o que não funciona para mim pode dar muito certo para você.

As primeiras palavras de Isaac D me fisgaram de uma forma que honrava fielmente mestres de terror como Lovecraft e Conan Doyle – para quem não sabe, o criador de Sherlock Holmes também escrevia contos de terror e mistério – trazendo elementos que envolviam o suspense tenso muito bem trabalhado, a paranoia da perseguição e criaturas quase indescritíveis. Li todo o horror dessas páginas como quem bebe água e tentei desvendá-lo incansavelmente, tecendo teorias que, ao final da leitura, se provaram incorretas.


Nesse horror com ares de fantasia e aventura, temos o jovem Isaac, rapaz criado pelos tios, cheio de valores da velha guarda, gentil e bem-apessoado, proveniente do interior e recém ingresso na universidade da cidade grande. Primeiramente, essa já é uma aventura por si só. Apenas quem parte do interior para a metrópole rumo à um objetivo como o jovem protagonista sabe de todas as dificuldades e ganhos extraídos nessa jornada.

Em determinado momento, Isaac notou que estava sendo seguido pelas sombras dos edifícios. As sombras se esticavam formando imensos tentáculos negros e o perseguiam em alta velocidade e em grande quantidade. Sentia um imenso perigo vindo daquelas sombras, e isso, ao contrário do que deveria, não provocava terror, mas trazia prazer. Estava em êxtase, tão imerso nas sensações que demorou a notar que, além das sombras, a terra, a chuva, as nuvens e até a eletricidade o perseguiam também.

Tudo acontece com ares de sonho, onde Isaac sobrevoa a cidade como um espectro de luz azulado até acordar em um corpo gordo e peludo que definitivamente não é o seu, em uma cama que não é sua e com uma mulher dormindo a seu lado. Entre risadas e teorias se formando, a leitura segue com o coitado fugindo da esposa até se deparar com um ser humanoide de terno, mas com rosto de elefante!

Fugindo do homem-elefante – que mais tarde saberá se chamar Chaugnar – e esbarrando em pessoas, Isaac descobre que, de alguma forma, consegue trocar de corpos como se sua alma tivesse a capacidade de pular e até rever as memórias de seu “hospedeiro”. Nessa fuga alucinada, mais criaturas bizarras, dessa vez extraídas da lenda virtual Slender Man, começam a persegui-lo. Em um troca-troca desenfreado de corpos, ele acaba por habitar o corpo de uma jovem que o percebe e se auto intitula golem, ou seja, uma pessoa que morre, mas não segue adiante e vive nessa Terra com um receptáculo geralmente feito de barro. Seu nome é Katarina e – aqui começam os golpes marciais e lutas – após ela incapacitar a criatura e despistar o restante, passa a conversar mentalmente com Isaac e contar um pouco sobre o Mundo Grande – o mundo completo que mescla o comum ao fantástico – e os seres que transitam nele.

E ela acabou por conseguir ler aquele jovem do campo como quem lê um livro em uma livraria antes de comprar. Não que aquele fosse seu tipo de livro, certamente não teria se interessado pela capa e muito menos pela sinopse, e se fosse uma compra on-line, jamais o teria adicionado ao carrinho. Contudo, após ler alguns trechos como quem não quer nada, acabou por perceber que aquele poderia ser um bom livro e resolveu dar a ele uma chance.

Após uma espécie de aula explicativa, Katarina leva Isaac até uma vila chamada Nova Ulthar para falar com Boss, mulher encarregada de proteger os golens das outras criaturas abomináveis. Já nessa fase do livro em que Isaac recebe um corpo de barro e é acusado de ser um demônio, acontece uma espécie de apresentação da equipe de “super-humanos” com suas habilidades, testes, festas alucinantes e uma breve história do mundo e suas particularidades escondidas dos humanos; até que um ataque coordenado dos slenders faz com que os moradores da vila fujam por túneis até uma fazenda distante cuidada por Legião, uma criatura repleta de várias almas cuja morte trágica foi o empecilho para seguir adiante.


Embora todo o conteúdo do livro tenha sido bem escrito, com ambientações e golpes bem minuciados e facilmente imagináveis, esse “miolo” repleto de ação e de incontáveis referências da cultura pop – Star Wars, Game of Thrones, Street Fighter, Slender, Os Mitos do Cthulhu e tantos outros que não recordo prontamente – e com respingos de flerte entre os dois personagens principais, não me cativou o suficiente como no início da história, o que foi decepcionante para mim. A meu ver a essência do horror cósmico, que parecia ser o pilar da narrativa, se perdeu um pouco com essa mistura de estilos literários.

Mas, antes do decisivo fim, o autor retoma ao braço repleto de mistério e horror apresentando novas criaturas e novas teorias assustadoras que voltam a honrar o legado dos grandes mestres trevosos. Se o leitor não for um grande conhecedor desses escritores que inspiraram Pileggi e de suas criaturas, não tema! Ao final do último capítulo, um glossário extremamente instrutivo irá tirar todas as suas dúvidas, pode ter certeza porque também tirou as minhas.

Particularmente, a cena de batalha final foi o exemplo de uma perfeita simbiose entre o terror de criaturas lovecraftianas com golpes marciais dignos de Dragon Ball Z. Simplesmente espetacular e, assim como o início de toda a aventura – ou desventura – de Isaac em sua busca por pertencimento em um mundo que se provou muito mais complexo, assim como ele já que não era quem imaginava ser, me deixou satisfeita e ansiosa por mais escritos de Pileggi, que sem dúvida estarão mais maduros.

Apesar do meu leve desapontamento, esta é uma história de ação e horror cósmico jovem adulta que vale a pena ser lida e conhecida à fundo, pois ela retrata muito mais do que já foi dito; veremos também a importância de se manter fiel aos seus princípios, o quanto as pessoas – e até criaturas – podem mudar dada a oportunidade, a lealdade e companheirismo que amigos fornecem até nos momentos mais sombrios, a busca por autoconhecimento que muitas vezes parece ser inalcançável.

Com uma edição bastante bela e diagramação impecável da Editora Avec, as páginas correm pelos dedos e respingam gravuras tão horrorosas quanto misteriosas. Enfim, espero por suas reflexões quanto à essa leitura que além de possuir uma riqueza de personagens, personalidades, criaturas, referências que nerd nenhum botaria defeito é, acima de tudo, uma narrativa made in Brazil.

  • Isaac D
  • Autor: Leandro Pileggi
  • Ano: 2019
  • Editora: Avec
  • Páginas: 248
  • Amazon

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